Publicado na Revista Ultimato Edição 334
Vivo um conflito a respeito da graça de Deus. Desde que me libertei dos legalismos, me senti menos culpado e mais livre, mas também sem forças para lutar contra o pecado e sem muita vontade de querer ser bom. Parece que o evangelho de regras, que ameaça e exige fidelidade a Deus para conquistar bênçãos, funciona mais. O que o senhor acha disso? (Paulo Roberto)
Paulo Roberto, não existe evangelho senão o da graça de Deus. Apenas a fé cristã conhece o conceito de graça: a disposição autodeterminada de Deus em amar e se relacionar com suas criaturas independentemente de seus méritos ou virtudes. A graça é a firmação de que Deus não faz barganhas e não pode ser manipulado para o bem (abençoar) ou para o mal (amaldiçoar). A graça implica necessariamente a superação de um relacionamento com Deus baseado em sacrifícios humanos, medo e culpa. A experiência da graça de Deus nos liberta da tirania da necessidade de fazer por merecer o amor de Deus. Porém, é um erro achar que o incondicional amor de Deus se destina apenas a nos livrar dos horrores do inferno pós-morte ou das maldições divinas ainda nesta vida. Viver sob a graça e o amor de Deus vai além da mera gestão de pecado e se concretiza em plenitude em uma vida dedicada a Deus: o amor de Cristo nos constrange a viver para ele (2Co 5.14-15). Pode ser que uma mensagem baseada em regras que definem os critérios para bênçãos e maldições seja mais eficaz em termos de controle de mentes e consciências, mas definitivamente não é o evangelho de Jesus Cristo. E porque não é o evangelho de Jesus Cristo, perpetua a escravidão, isto é, sustenta neuroses, mantém as pessoas infantilizadas e amedrontadas, oportuniza hipocrisias e abusa de consciências ignorantes e corações em sofrimento. O evangelho de Jesus Cristo é diferente: “Vocês conhecerão a verdade, e a verdade os libertará. E se o Filho os libertar, vocês de fato serão livres” (Jo 8.32, 36).
Minhas colegas de faculdade levantaram um questionamento que eu não sei responder: “Se Deus me ama, e eu tenho a liberdade de escolher se quero servi-lo ou não, então por que seria destruída se escolhesse não servi-lo?”. O argumento em que se basearam para levantar tal questão é: “Religião é a crença de que existe um ser invisível que observa tudo o que fazemos. Ele tem uma lista de dez coisas que não se pode fazer e, caso façamos uma delas, ele nos manda para um lugar onde iremos queimar por toda a eternidade”. Como posso responder a isso? (Carolina)
A definição de religião que você enviou é elementar e inclusive muito comum, embora absolutamente equivocada. Apenas pessoas que querem destruir a religião levantam esse tipo de questionamento. Reduzir Deus ou a experiência religiosa a uma questão moral é um simplismo. A pergunta correta não diz respeito ao que acontece comigo se eu desobedecer aos Dez Mandamentos (questão moral), mas ao que acontece comigo se eu pular do 37° andar, ou o que acontece se, para fugir da violência urbana, eu tentar viver nas profundezas do oceano (questão ontológica: da natureza do ser). Acreditar que Deus é um velhinho barbudo e melindroso não é muito diferente de acreditar em Papai Noel. Apenas mentes infantis, ou mal intencionadas, ou que lucram com isso, se interessam em reforçar esse tipo de crença. A consciência de que não existe vida autônoma em relação a Deus não é apenas cristã. Os poetas gregos também intuíram o que a Bíblia Sagrada afirma: em Deus “vivemos, nos movemos e existimos” (At 17.28). Isso significa que o nome do jogo não é “condenação ao inferno por causa de desobediência moral”. O pecado, portanto, não é uma questão de Dez Mandamentos, mas se assemelha muito mais à pretensão do braço de continuar vivo depois de amputar-se do corpo, ou à do ventilador que acredita que vai continuar funcionando depois de desplugar-se da tomada.
• Ed René Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo. É mestre em ciências da religião e autor de, entre outros, “O Livro Mais Mal-Humorado da Bíblia” www.edrenekivitz.com
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