28 de mai. de 2012

A primavera árabe e os cristãos (parte 1)



Paul Freston

Os editores já haviam me pedido um artigo sobre a primavera árabe quando, folheando a edição de janeiro/fevereiro de 2012, me deparei com a matéria Dois pesos e duas medidas (“Mais que notícias”). O texto começa afirmando que “as portas estão escandalosamente abertas para o islamismo no Brasil (e em todos os outros países democráticos)”. Entendi logo o intuito do artigo: estabelecer o contraste com o fato de que as portas estão “hermeticamente fechadas para o cristianismo em quase todos os países islâmicos”. A preocupação era, portanto, com a falta de liberdade religiosa em boa parte do mundo islâmico (ainda que a expressão “hermeticamente fechada” não descreva bem a situação). Preocupação legítima (e mesmo necessária), não somente pelo interesse cristão na divulgação do evangelho, mas também por uma questão de direitos humanos em geral e, sobretudo, pela chamada “mãe histórica de todos os direitos”, a liberdade religiosa.

De todo modo, surpreendeu-me a frase “as portas estão ‘escandalosamente’ abertas para o islamismo”. Por que “escandalosamente”? Não deveríamos dizer “corretamente” ou “honrosamente”? Se acreditamos na liberdade religiosa (para todos!), não pode haver nada de escandaloso nisso; e a falta de liberdade do outro lado não altera nada. Nunca entendi a mentalidade dos cristãos que insistem em uma “reciprocidade islâmica” (como o direito de construir igrejas na Arábia Saudita) para que os muçulmanos gozem de plenos direitos no Ocidente (moeda de troca). Em vez de educar pelo bom exemplo, querem usar de uma moeda de troca política. Além disso, é bom termos um pouco de humildade histórica: durante a maior parte da história, os países cristãos não foram modelo de liberdade religiosa.

Acima de tudo, é preciso ressaltar que, assim como os cristãos são discriminados em países islâmicos, os próprios muçulmanos são também discriminados quando não concordam com a versão do islã defendida pelo seu governo. Ou seja, o que devemos lamentar é a falta de liberdade religiosa em geral nesses países.

Os dados sobre o crescimento do islã na América Latina e no Brasil, no referido artigo, são normais. Em muitos países do mundo o crescimento evangélico é igual ou maior que o islâmico, e não achamos nada demais nisso. Por que afirmar, em tom de espanto, que “a liberdade é tal que cerca de cinquenta xeiques estrangeiros [...] vivem no Brasil”? Quantos missionários evangélicos estrangeiros vivem no Brasil há mais de 150 anos? E já vai longe a época em que a Igreja Católica se espantava com “tal liberdade” para os não católicos. E se “doze brasileiros estudam em universidades da Arábia Saudita e da Síria”, o que é isso comparado com o número de evangélicos e católicos brasileiros estudando teologia no exterior?

O artigo termina com uma citação apropriada do secretário do Vaticano para as Relações com Outros Estados, lembrando-nos que “a liberdade religiosa não pode se limitar à simples liberdade de culto”, mas inclui “o direito de pregar, educar, converter, contribuir para o discurso político e participar plenamente das atividades públicas”. Se isso vale para os cristãos nos países de maioria muçulmana, vale igualmente para os muçulmanos no Brasil. Aliás, é de se esperar que a proporção cada vez maior de muçulmanos que vive em países com liberdade religiosa acabe influenciando os países de maioria muçulmana. Mas, para isso, é bom que os cristãos deixem de achar “escandalosos” os resultados naturais de tal liberdade.(a convivência pode gerar bons frutos em outros países islâmicos que não gozam desta liberdade religiosa)

Minha preocupação com o artigo de Ultimato pode parecer exagerada, mas é confirmada pelo que testemunhei no 6º Congresso Brasileiro de Missões, em outubro de 2011, em Caldas Novas, GO. Havia vozes mais sensatas ali, nem todas com acesso ao “pódio”. Contudo, os comentários sobre o islã por parte de alguns conferencistas foram muito preocupantes. “O autor do Alcorão é o diabo”, afirmou um deles, sem que houvesse um murmúrio perceptível de protesto dos 1.500 presentes. (E é bom que os leitores saibam que a atribuição do Alcorão ao diabo não constitui de forma alguma artigo tradicional da fé evangélica. Além das partes do Alcorão que são patrimônio comum das religiões monoteístas, não é necessário atribuir tudo de que discordamos ao diabo.) O principal seminário sobre o islã usou de estatísticas exageradas sobre o crescimento islâmico, ignorou a imensa diversidade dentro do islã e contou anedotas que pintavam o pior retrato possível dos muçulmanos. (eu também já participei de conferencias missionárias que usaram do mesmo expediente.)

Por que começar uma avaliação das mudanças no mundo árabe com essas preocupações? Porque a capacidade cristã de “ler” os acontecimentos no Oriente Médio é afetada por esse anti-islamismo (e também pelo sionismo cristão, que avalia tudo que acontece pelo prisma de “benefício” ou “prejuízo” para Israel). Porém, o cristão não é chamado a pensar como um torcedor em um estádio, aplaudindo o que parece melhorar as chances do “nosso time”. A história sempre dá um baile em quem pensa assim. Como o caso dos evangélicos americanos que fizeram pressão para que se invadisse o Iraque, pois isso “abriria a região inteira para a pregação do evangelho”! O anti-islamismo e a vontade de forçar a mão da história não constituem uma boa base para avaliarmos o que acontece no mundo árabe. Melhor pensarmos a partir dos valores do reino de Deus e usar as informações que a história e as ciências sociais nos fornecem. É o que tentaremos fazer na próxima edição.

Paul Freston • inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.


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